sábado, 5 de março de 2011


ReportagensEquadorUma viagem a Chinkian entza

Ricardo Tello Fev 08, 2011
Povos Shurar e Achuar estão entre os mais afastados na Amazonia equatoriana.
As enormes mãos de Natale Chuin tomam com firmeza o manche do pequeno avião Cessna 172, enquanto corre à cabeceira da pista de Sucúa, uma das regiões da província amazônica de Morona Santiago.

Antes de colocar toda a potência no seu monomotor, este indígena da nação Shuar marca a rota da aeronave com seu GPS (Sistema de Posicionamento Global). São 16h, e nos espera um vôo de 50 minutos sobre a massa montanhosa do Cutucú, última barreira entre os povos do sopé da cordilheira Oriental dos Andes, e o enorme manto verde da floresta amazônica equatoriana.

O desdém de Natale com um de seus passageiros é evidente. Guillermo Tukup, de 28 anos, é da nação Achuar, e embora apenas alguns costumes gastronômicos e de vestuário os diferencie, as posições entre estas duas nações são quase irreconciliáveis.

Guillermo, quem conheci no aeroporto de Sucúa enquanto esperava o voo que me levaria à localidade de Taisha, se ofereceu generosamente a me mostrar sua comunidade, seis horas a leste de Taisha, na fronteira com o Peru.

Video da viagem do repórter Ricardo Tello ao território Shuar (em espanhol)
Já em terra, a atitude dos colonos, maioria da população de Taisha, diante dos indígenas parece hostil. Por isso perdemos uma hora neste povoado cujo prefeito, Celestino Wisum, tem um conceito de desenvolvimento baseado na abertura de estradas e a introdução de veículos motorizados por embarcações que navegam pelos rios Morona e Yaupi.

Guillermo procurou inutilmente uma carga que enviou em um voo da manhã. “Olha filho, faz muito tempo que deixei o papel de desocupado, então vai procurar mais para lá”, respondeu, com um ar de ironia, um colono proprietário de uma loja onde se vende licor, junto à pista de pouso de Taisha.

Preocupados pela iminente chegada da noite, Guillermo decide esquecer a carga e imediatamente conseguimos que uma camionete nos levasse até Macuma, último ponto povoado por colonos, antes de entrar a território Shuar.

 
Dezenove horas. Faço um novo registro no meu diário de campo no momento de iniciar a caminhada por uma ponte inconclusa sobre o rio Macuma. Entramos por uma trilha cheia de pedras quase redondas e logo pisamos no enorme tapete de folhas, acumuladas em centenas, talvez milhares de anos de invernos e verões, as duas únicas estações neste lado do mundo.

Estamos ali para contar como convivem floresta e homem. Talvez a ideia de convivência já esteja correndo o risco, não só pelas estradas do prefeito Wisum, mas também pela iminência de um mal entendido desenvolvimento.
 
O concerto verde

O relógio luminoso marca as 20h15 quando fazemos nossa primeira parada. Minutos antes, a enorme folhagem que escurecia o céu terminava e, repentinamente, saímos num descampado que permite observar, em todo seu esplendor, a via láctea. É um céu esponjoso, com milhões de pirilampos perfurando a escuridão e deixando ver o perfil das copas de altíssimas árvores.

Não lembro ter tido uma noite tão naturalmente iluminada. Embora não seja ‘nativo digital’, pertenço à geração da televisão; então minha iluminação noturna nos últimos 40 anos tem sido artificial.

Guillermo, que recém percebo ser um perfeito desconhecido com quem compartilho a floresta, diz que atravessamos um descampado usado como pista de pouso para casos de emergência dos Shuar, e que ao entrar novamente na selva, ao final da pista, estaremos em território Achuar. Ou seja, não há retorno possível.

Cobertos pela vegetação, o concerto verde retorna. Centenas de cantos de aves, convocatórias de animais prontos para acasalar, diminutos acordes de insetos, uivos de mamíferos em fuga, milhares e milhares de vozes que invadem os sentidos da audição, na noite amazônica.

É o mesmo revoado musical que nos acompanha desde que pousamos em Taisha, em uma serenata que não perde o compasso nem sequer pela ausência da lua, ou pela passagem dos desconhecidos.

Segunda parada obrigatória: diante de mim, a poucos metros, a enorme árvore derrubada sobre o rio Wichimi desaparece na profunda escuridão. Pressentindo o perigo, entrego a Guillermo todo meu equipamento eletrônico e começo a caminhar, com passinhos curtos, sobre o afluente.

O último momento que me lembro na passada pela árvore-ponte é a luz da lanterna de Guillermo se movendo até a margem oposta. Imediatamente as escuras águas do Wichimi me envolvem, enquanto com os pés toco o fundo arenoso.

Do retorno à superfície Guillermo grita: Nada para cá, irmão!! E o fiz com todas as minhas forças. Já fora d'água, só o concerto verde me devolve a tranquilidade enquanto anoto no meu caderno: 21h30.
É a úmida bem-vinda à floresta equatorial.


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“Wetai ikiam”

É o ampakai (como chamam a terça-feira, em Achuar), do mês yankuam (dezembro). Não são nem ainda 7h da manhã e a elevada umidade do ambiente molha as roupas.

Pedro Chinkim, chefe da comunidade Chikian entza, escuta atentamente a tradução de Guillermo sobre o motivo da visita do mestiço que baixou dos Andes sem anuncio nem autorização prévios. E lança uma palavra que tranquiliza a todos: penker taume (bem-vindo).

Rodeado pelas filhas e esposa, Pedro inicia um longo monólogo sobre os motivos pelos quais temem o ingresso de certas empresas consideradas “veículos para o desenvolvimento”.

Refere-se com especial ênfase às petroleiras. Apesar do isolamento, em Chinkian entza, onde moram umas 250 pessoas dispersas no território Achuar, as notícias sobre o projeto de proteger o Yasuní da exploração petroleira chegaram de maneira oportuna. Como Federação Nai, guardam vínculos próximos com a nação Cofán do Equador, um movimento dos indígenas do Oriente que conseguiu declarar cerca de 400 mil hectares de floresta nublada, montana e úmida tropical, como área protegida.

Pedro Chinkim convida “watai ikiam” (vamos ao bosque). E, no segundo dia de visita, caminhamos várias horas por uma trilha que nos leva a leste, próximo à fronteira com o Peru. No trajeto, os cheiros da árvore de canela seduzem nossos sentidos.

Em um arbusto desta mesma espécie, dois pintinhos recém saídos da casca esperam seus pais. Nos nossos pés, uma lontra gigante de rio nada de costas águas abaixo enquanto devora um peixe. Para o almoço pegamos da selva goiabas, frutas de palmeiras, frutas de conde, mamões...

O ambiente está saudável. Tal como quando seus avós nômades, que vieram do lado peruano, instalaram o povo três gerações atrás, construindo a praça com machados de pedra. É uma historia que repetem frequentemente: vieram do lado peruano; mataram seus rivais; foram evangelizados e hoje procuram desenvolvimento.

A terceira noite é acompanhada por um forte dilúvio. As gotas caindo formam uma imensa rede quase impenetrável à vista. As gotas batendo na folhagem verde provocam um eco que não tem origem nem final. Lanterna na mão conto 207 picadas de insetos só no antebraço direito. E assim estão as pernas e o tronco.

Tão torrencial chuva é parte de um ecossistema que se assemelha à mega fauna. As raízes de algumas espécies de árvores, como as do tseika, formam gigantescas asas ao redor do tronco. Os indígenas desenvolveram um repelente natural e estão a salvo dos insetos.

Enquanto estas zonas ficarem longe do desenvolvimentismo, continuarão assim: saudáveis.

Toda essa superfície foi composta por depósitos aluviais enchidos durante o processo da formação da cordilheira dos Andes, há milhões de anos. Terras povoadas por indígenas que há mais de 500 anos fugiram de uma terrível colonização que empurrou a migração amazônica.

Hoje a evangelização faz seu papel e deixa marcas.

Mesmo longe da zona do projeto Yasuní ITT, os indígenas defendem a intenção de mantê-lo preservado. “Ikia nakitiaji nunca machari juka”, diz o chefe da comunidades e Guillermo traduz: “não queremos as petroleiras”.

No território Achuar não foram reportadas reservas petrolíferas, tampouco estão em uma área protegida. Mas sua posição é firme sobre a exploração do petróleo. “Nossos alimentos serão afetados”, diz Guillermo, após uma explicação de como eles obtém o sustento da floresta, sem impactá-la. Aproveitam as águas do rio Yankutz. O isolamento das intenções desenvolvimentistas do prefeito Wisum os protege.

O que aconteça com Yasuní será premonitório para povos como Chinkian entza.

Enquanto voo à “civilização”, os Shuar e os Achuar, esperam que ela nunca chegue para perfurar o solo. Para extrair o ouro negro. Para deixá-los sem esperança.


Ricardo Tello é jornalista free-lance. Foi editor dos diários El Universo de Guayaquil e El Tempo de Cuenca. Ganhou diversos prêmios como o Jorge Matilla Ortega, no Equador, e na primeira convocatória das Bolsas de Investigação Jornalística da Fundação Avina. Atualmente divide seu trabalho com a docência universitária

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