sábado, 5 de março de 2011



Uma série de verdades que foram consideradas mais ou menos incontestáveis durante muitas décadas na Amazônia foram progressivamente transformadas em falácia como consequência de contextos socioeconômicos que mudaram, de novas descobertas de recursos naturais e pelo desenvolvimento de novas tecnologias. Este fenômeno teve uma forte aceleração durante os últimos 20 anos da história amazônica. É interessante discutir estas “verdades” que até foram pressupostos sobre a Amazônia, já que durante muito tempo, algumas serviram para justificar o desenvolvimento convencional que a levou a sua atual situação de desastre ambiental e, também, outras serviram de argumento aos que tentaram conservá-la ou aproveitá-la de maneira sustentável. Essas verdades de tempos passados que perderam amparo na atualidade não devem ser confundidas com aqueles mitos amazônicos que nunca foram mais que isso, mas que também, contribuíram para formar a realidade atual.

Essas verdades ou meias verdades do passado incluem a ideia do “grande vazio amazônico”, a incapacidade dos solos para suportar a atividade agropecuária e a baixa contribuição dessa região às economias nacionais. Entre os mitos ou quase mitos de antes e de hoje devem ser mencionados, obviamente, o conceito da “terra virgem” e a ideia do “pulmão do mundo”, além da persistente noção de que as “potências neocoloniais querem invadir a Amazônia”. Também pode somar-se a estas a suposta importância do recurso florestal madeireiro e a viabilidade de manejá-lo sustentavelmente assim como a tão promovida utilidade do zoneamento ecológico-econômico para ordenar o uso do território. Também existe uma serie de novas realidades que duas décadas atrás não eram levadas a sério, como a concentração urbana na Amazônia, a comprovação das mudanças climáticas globais, a existência de uma infraestrutura já considerável e rapidamente crescente, o papel predominante do Brasil nos territórios dos países amazônicos vizinhos e, entre outras, o reconhecimento de grandes territórios indígenas assim como a crescente função política da população indígena amazônica.

Não se pode abordar neste artigo, menos ainda com a profundidade devida, tantos temas tão complexos. Mas se faz uma tentativa de explicá-los, como uma introdução ao assunto, esperando que informem e estimulem a pensar mais sobre esta região cada vez mais intensamente transformada.

Vazio amazônico, terra virgem e índios bravos

O primeiro tema é o que se refere ao “vazio amazônico” e por extensão, ao da “terra ou selva virgem” e ao da existência de “índios bravos”, hoje eufemisticamente denominados “em isolamento voluntário”. Para começar existem hoje muitas evidências científicas que demonstram que a Amazônia, inclusive na sua planície, suportou populações humanas muito mais elevadas do que o pensado até pouco tempo antes da conquista da América do Sul pelos espanhóis e portugueses e que, de acordo a muitas provas, nelas existiam culturas e civilizações inesperadamente desenvolvidas. Seu desaparecimento, como a de tantas outras culturas em selvas tropicais do planeta, é e continuará sendo motivo de discussões, mas elas não desdizem o feito de que a Amazônia não foi um “espaço vazio” e que onde estas culturas se instalaram não houve nada parecido com a “terra virgem”.

"A população indígena amazônica também ocupou praticamente todo o território com base na técnica de rotação de campos de cultivo e de áreas de caça, coleta e pesca."
Alimentar essas populações e produzir excedentes para possibilitar o desenvolvimento cultural e para se relacionar com outras culturas só se consegue através de impactos significativos na natureza. Outra coisa é que, depois de extinguidas as civilizações, a selva recuperou o espaço apagando os traços mais evidentes, mas não todos. Por outra parte, a população indígena amazônica que substituiu aos desenvolvimentos culturais prévios, embora em geral tivesse uma densidade muito baixa, também ocupou praticamente todo o território com base na técnica de rotação de campos de cultivo e de áreas de caça, coleta e pesca. Nos dois últimos séculos, mas especialmente nos últimos 50 anos veio o desaparecimento desses índios “bravos” dos quais só existem alguns milhares e que agora são conhecidos como indígenas em isolamento voluntário. Ou seja, não existe na Amazônia nenhum espaço vazio, nem terra realmente virgem nem, muito menos, índios bravos que devem ser temidos.

Ainda mais, a Amazônia considerada como selva, ou seja, a que está coberta de matas, perdeu com certeza mais de 40% de sua extensão durante os últimos 300 anos. As perdas mais antigas em tempos coloniais e durante o primeiro século ou mais de vida independente, não registradas nos sistemas de medição de desmatamentos atuais, foram nas montanhas andinas da Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, entre os 4000 e 2000 metros sobre o nível do mar, onde a população andina chegou para criar gado de forma extensiva e praticar uma agricultura itinerante inadequada para a realidade topográfica e ecológica da região. Milhões e milhões de hectares de ladeiras de montanhas hoje despidas de vegetação atestam isso.

Nos últimos 50 anos, principalmente no Brasil, mas também em todos os outros países, o ataque à selva amazônica foi realizado através da abertura de estradas cada vez mais profundas, com o pretexto de garantir a presença nacional nas fronteiras e de habilitar o território para a expansão da pecuária, da agricultura e o saque de madeiras valiosas. De acordo com os governos, peritos em esconder a verdade quando lhes convêm, esta última etapa de desmatamento somente significa uma redução média (adicional a que já é histórica) de aproximadamente 18% dos bosques. Mas, avaliações independentes duplicam essa quantidade e mostram, também, que as estatísticas governamentais e das Nações Unidas, que são seus alto falantes, omitem cuidadosamente informação sobre a degradação das florestas, que atinge facilmente mais de 60% dos bosques que ainda estão de pé.

Também a isto deve se somar que a população amazônica, embora sua densidade continue sendo baixa, cresceu muito representando quase 16% da população do Brasil e mais de 13% do Peru. O censo de 2010 mostrou que existem 16 milhões de pessoas na Amazônia brasileira. Além disso, a população amazônica é a que tem atualmente o crescimento anual mais rápido.

Ou seja, na verdade, não somente é falso que a Amazônia seja um grande espaço abandonado com selva virgem cheia de feras e índios guerreiros, mas também é mentira que essa região, vista como floresta, seja tão grande como se acredita. Porém, curiosamente, este tipo de argumento continua sendo difundido nos discursos e propostas de políticos ignorantes ou sem escrúpulos, visionários megalomaníacos, geopolíticos ultranacionalistas e pelos empresários que colocam seus interesses sobre os da maioria.

Pulmão do mundo? Mudanças climáticas

"A selva amazônica, como outras, fornece muitos serviços ambientais essenciais, tais como fixação de carbono, mas não são produtores de oxigênio por excelência."
É triste ver que muitos ainda usam o argumento de que a Amazônia é o “pulmão do mundo” para justificar a defesa da selva amazônica, fazendo um débil serviço por esta causa. Faz décadas que esta ideia que, aliás, é impressionante, foi cientificamente descartada. A selva amazônica, como outras, fornece muitos serviços ambientais essenciais, tais como fixação de carbono, mas não são produtores de oxigênio por excelência. Além disso, até a figura usada neste caso é inadequada, porque os pulmões não servem para expelir oxigênio para fora do corpo. Na verdade, os pulmões  competem pelo oxigênio com os pulmões dos demais seres pulmonados. Capturam o oxigênio do ar e o disponibilizam para as células do corpo ou ao ser a que pertencem, que neste caso seriam, figurativamente, as próprias plantas que compõem a floresta amazônica.

Outra coisa é falar das selvas sobre a realidade representada pelos relativamente novos conhecimentos e suas confirmações sobre o aumento do CO2 na atmosfera e, neste caso, sim do papel dos bosques como o amazônico na fixação de carbono na biomassa e no solo, o que pode compensar as emissões desse gás a partir das atividades humanas. Este tema é sim, um argumento de peso para manter os bosques de pé e sem degradação, já que como foi demonstrado por ecólogos e economistas, o custo de manter o bosque é bem menor que o custo de evitar a contaminação do ar ou de reduzir o nível de carbono na atmosfera. Já existem negócios deste tipo em execução e muitos outros virão quando, finalmente, as negociações internacionais terminem, o que pode demorar, mas cujo rumo é inevitável. Também já foi comprovado que conservar a selva para negócios de carbono pode ser muito mais rentável economicamente que criar gado de forma extensiva como se continua fazendo na maior parte da área desmatada.

Mas, conservar a selva não só é economicamente interessante para negócios de carbono. Também é para garantir o funcionamento regular do regime hidrológico e de outros ciclos biogeoquímicos e, obviamente, para manter a diversidade biológica. O assunto da disponibilidade regular da água e da sua qualidade é central em termos sociais e econômicos. Como bem se sabe já são muitas as cidades aos pés das montanhas andinas amazônicas que sofrem regularmente a escassez seria de água e muitas outras cidades e vilas não encontram mais água limpa devido à contaminação de minas e explorações petroleiras. Quando empresas, muitas delas brasileiras contribuem mediante obras e explorações ambientalmente descuidadas a desmatar a Amazônia dos países andinos, também levam a destruição e a miséria a seu próprio território, provocando sucessivamente inundações e secas extremas.

Qualidade dos solos para agricultura, zoneamento ecológico econômico

Uma das verdades quase não discutidas por edafólogos, ecólogos, planificadores e inclusive por agrônomos de 30 anos atrás era que a maior parte da Amazônia carece de solos capazes de suportar atividades agropecuárias de maneira sustentável. Nos anos 1970 as cifras mais normalmente mencionadas eram que apenas um 3% poderia servir para agricultura unicamente, e que em total só 10 a 11% da região suportaria agricultura e pecuária. Todo o resto apenas teria vocação florestal de produção ou proteção. Isso era argumento para preservar a maior parte do território ou dedicá-lo apenas a uma exploração florestal cuidadosa, o que obviamente não aconteceu.

"Pode se cultivar sustentavelmente quase em qualquer lugar, inclusive numa nave espacial. Fazê-lo é só um problema de necessidade ou de custo."
Mas o percentual de terras aptas para usos agropecuários foram aumentando a cada revisão, com base na aplicação de novos critérios incentivados pelo desejo de expandir a ocupação da região, ou se preferir, a colonização e, em parte, devido às novas variáveis econômicas e tecnológicas. Por exemplo, a falta de fósforo e o excesso de alumínio e a acidez, entre outras limitações poderiam ser corrigidas se o transporte fosse mais barato através de boas estradas, se o valor de mercado dos produtos subisse ou se fossem descobertas novas jazidas de fosfatos e calcários. Atualmente, este tipo de argumentos para evitar a mudança de uso da terra, ou seja, o desmatamento perdeu legitimidade. Isso ficou perfeitamente demonstrado com a rápida ocupação e o êxito econômico agrícola do cerrado brasileiro, cujos solos não são melhores que os da Amazônia e, também, com a atual ocupação agropecuária da parte amazônica de Mato Grosso e do Pará. Na verdade, como se sabe, pode se cultivar sustentavelmente quase em qualquer lugar, inclusive numa nave espacial. Fazê-lo é só um problema de necessidade ou de custo. A tecnologia existe e pode avançar muito mais.

Também é dos anos 1970 a ideia de zoneamento ecológico econômico, uma versão tropical, na verdade brasileira, do ordenamento territorial europeu. O zoneamento usa, em grande medida, a informação sobre a capacidade de uso do solo. Foi aplicado em Rondônia, na década dos anos 1980 e logo se expandiu para todo o Brasil nas décadas seguintes e assim também foi exportado aos países andino amazônicos. Não faz falta discutir a necessidade ou utilidade de ordenar o território mediante o uso da informação sobre o potencial dos solos, ecologia, hidrologia, distribuição da população, recursos naturais disponíveis e a demanda econômica. Também não é necessário argumentar que o zoneamento deve ser o resultado de um processo socializado, consultado, concordado e que pode ser revisto. Tudo isto é óbvio. Mas o que é igualmente óbvio trinta anos depois de ser implementado pela primeira vez e de ter consumido anos de esforço de profissionais e de ter gasto fortunas para preparar mapas coloridos e organizar reuniões para discuti-lo, é que fora de educar, os processos não serviram para nada. Todos e cada um dos exercícios de zoneamento feitos até agora ofereceram resultados transitórios e não ajudaram a evitar a ocupação caótica dos territórios onde foram aplicados. O último episódio aconteceu no estado de Mato Grosso, no Brasil, onde um longo e cuidadoso trabalho de zoneamento concordado foi convertido em uma palhaçada por interesses e ignorância dos legisladores da Assembleia Legislativa que devia aprová-lo. Até agora, o único ordenamento territorial que funcionou mais ou menos é o que resulta do estabelecimento de áreas protegidas, territórios indígenas e de titulação efetiva de propriedades.



Marc Dourojeanni foi professor e decano da Faculdade Florestal da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru e Diretor Geral Florestal desse país. Atualmente é Presidente da Fundação ProNaturaleza

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