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Essas verdades ou meias verdades do passado incluem a ideia do “grande vazio amazônico”, a incapacidade dos solos para suportar a atividade agropecuária e a baixa contribuição dessa região às economias nacionais. Entre os mitos ou quase mitos de antes e de hoje devem ser mencionados, obviamente, o conceito da “terra virgem” e a ideia do “pulmão do mundo”, além da persistente noção de que as “potências neocoloniais querem invadir a Amazônia”. Também pode somar-se a estas a suposta importância do recurso florestal madeireiro e a viabilidade de manejá-lo sustentavelmente assim como a tão promovida utilidade do zoneamento ecológico-econômico para ordenar o uso do território. Também existe uma serie de novas realidades que duas décadas atrás não eram levadas a sério, como a concentração urbana na Amazônia, a comprovação das mudanças climáticas globais, a existência de uma infraestrutura já considerável e rapidamente crescente, o papel predominante do Brasil nos territórios dos países amazônicos vizinhos e, entre outras, o reconhecimento de grandes territórios indígenas assim como a crescente função política da população indígena amazônica.
Não se pode abordar neste artigo, menos ainda com a profundidade devida, tantos temas tão complexos. Mas se faz uma tentativa de explicá-los, como uma introdução ao assunto, esperando que informem e estimulem a pensar mais sobre esta região cada vez mais intensamente transformada.
Vazio amazônico, terra virgem e índios bravos
O primeiro tema é o que se refere ao “vazio amazônico” e por extensão, ao da “terra ou selva virgem” e ao da existência de “índios bravos”, hoje eufemisticamente denominados “em isolamento voluntário”. Para começar existem hoje muitas evidências científicas que demonstram que a Amazônia, inclusive na sua planície, suportou populações humanas muito mais elevadas do que o pensado até pouco tempo antes da conquista da América do Sul pelos espanhóis e portugueses e que, de acordo a muitas provas, nelas existiam culturas e civilizações inesperadamente desenvolvidas. Seu desaparecimento, como a de tantas outras culturas em selvas tropicais do planeta, é e continuará sendo motivo de discussões, mas elas não desdizem o feito de que a Amazônia não foi um “espaço vazio” e que onde estas culturas se instalaram não houve nada parecido com a “terra virgem”.
| "A população indígena amazônica também ocupou praticamente todo o território com base na técnica de rotação de campos de cultivo e de áreas de caça, coleta e pesca." |
Ainda mais, a Amazônia considerada como selva, ou seja, a que está coberta de matas, perdeu com certeza mais de 40% de sua extensão durante os últimos 300 anos. As perdas mais antigas em tempos coloniais e durante o primeiro século ou mais de vida independente, não registradas nos sistemas de medição de desmatamentos atuais, foram nas montanhas andinas da Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, entre os 4000 e 2000 metros sobre o nível do mar, onde a população andina chegou para criar gado de forma extensiva e praticar uma agricultura itinerante inadequada para a realidade topográfica e ecológica da região. Milhões e milhões de hectares de ladeiras de montanhas hoje despidas de vegetação atestam isso.
Nos últimos 50 anos, principalmente no Brasil, mas também em todos os outros países, o ataque à selva amazônica foi realizado através da abertura de estradas cada vez mais profundas, com o pretexto de garantir a presença nacional nas fronteiras e de habilitar o território para a expansão da pecuária, da agricultura e o saque de madeiras valiosas. De acordo com os governos, peritos em esconder a verdade quando lhes convêm, esta última etapa de desmatamento somente significa uma redução média (adicional a que já é histórica) de aproximadamente 18% dos bosques. Mas, avaliações independentes duplicam essa quantidade e mostram, também, que as estatísticas governamentais e das Nações Unidas, que são seus alto falantes, omitem cuidadosamente informação sobre a degradação das florestas, que atinge facilmente mais de 60% dos bosques que ainda estão de pé.
Também a isto deve se somar que a população amazônica, embora sua densidade continue sendo baixa, cresceu muito representando quase 16% da população do Brasil e mais de 13% do Peru. O censo de 2010 mostrou que existem 16 milhões de pessoas na Amazônia brasileira. Além disso, a população amazônica é a que tem atualmente o crescimento anual mais rápido.
Ou seja, na verdade, não somente é falso que a Amazônia seja um grande espaço abandonado com selva virgem cheia de feras e índios guerreiros, mas também é mentira que essa região, vista como floresta, seja tão grande como se acredita. Porém, curiosamente, este tipo de argumento continua sendo difundido nos discursos e propostas de políticos ignorantes ou sem escrúpulos, visionários megalomaníacos, geopolíticos ultranacionalistas e pelos empresários que colocam seus interesses sobre os da maioria.
Pulmão do mundo? Mudanças climáticas
| "A selva amazônica, como outras, fornece muitos serviços ambientais essenciais, tais como fixação de carbono, mas não são produtores de oxigênio por excelência." |
Outra coisa é falar das selvas sobre a realidade representada pelos relativamente novos conhecimentos e suas confirmações sobre o aumento do CO2 na atmosfera e, neste caso, sim do papel dos bosques como o amazônico na fixação de carbono na biomassa e no solo, o que pode compensar as emissões desse gás a partir das atividades humanas. Este tema é sim, um argumento de peso para manter os bosques de pé e sem degradação, já que como foi demonstrado por ecólogos e economistas, o custo de manter o bosque é bem menor que o custo de evitar a contaminação do ar ou de reduzir o nível de carbono na atmosfera. Já existem negócios deste tipo em execução e muitos outros virão quando, finalmente, as negociações internacionais terminem, o que pode demorar, mas cujo rumo é inevitável. Também já foi comprovado que conservar a selva para negócios de carbono pode ser muito mais rentável economicamente que criar gado de forma extensiva como se continua fazendo na maior parte da área desmatada.
Mas, conservar a selva não só é economicamente interessante para negócios de carbono. Também é para garantir o funcionamento regular do regime hidrológico e de outros ciclos biogeoquímicos e, obviamente, para manter a diversidade biológica. O assunto da disponibilidade regular da água e da sua qualidade é central em termos sociais e econômicos. Como bem se sabe já são muitas as cidades aos pés das montanhas andinas amazônicas que sofrem regularmente a escassez seria de água e muitas outras cidades e vilas não encontram mais água limpa devido à contaminação de minas e explorações petroleiras. Quando empresas, muitas delas brasileiras contribuem mediante obras e explorações ambientalmente descuidadas a desmatar a Amazônia dos países andinos, também levam a destruição e a miséria a seu próprio território, provocando sucessivamente inundações e secas extremas.
Qualidade dos solos para agricultura, zoneamento ecológico econômico
Uma das verdades quase não discutidas por edafólogos, ecólogos, planificadores e inclusive por agrônomos de 30 anos atrás era que a maior parte da Amazônia carece de solos capazes de suportar atividades agropecuárias de maneira sustentável. Nos anos 1970 as cifras mais normalmente mencionadas eram que apenas um 3% poderia servir para agricultura unicamente, e que em total só 10 a 11% da região suportaria agricultura e pecuária. Todo o resto apenas teria vocação florestal de produção ou proteção. Isso era argumento para preservar a maior parte do território ou dedicá-lo apenas a uma exploração florestal cuidadosa, o que obviamente não aconteceu.
| "Pode se cultivar sustentavelmente quase em qualquer lugar, inclusive numa nave espacial. Fazê-lo é só um problema de necessidade ou de custo." |
Também é dos anos 1970 a ideia de zoneamento ecológico econômico, uma versão tropical, na verdade brasileira, do ordenamento territorial europeu. O zoneamento usa, em grande medida, a informação sobre a capacidade de uso do solo. Foi aplicado em Rondônia, na década dos anos 1980 e logo se expandiu para todo o Brasil nas décadas seguintes e assim também foi exportado aos países andino amazônicos. Não faz falta discutir a necessidade ou utilidade de ordenar o território mediante o uso da informação sobre o potencial dos solos, ecologia, hidrologia, distribuição da população, recursos naturais disponíveis e a demanda econômica. Também não é necessário argumentar que o zoneamento deve ser o resultado de um processo socializado, consultado, concordado e que pode ser revisto. Tudo isto é óbvio. Mas o que é igualmente óbvio trinta anos depois de ser implementado pela primeira vez e de ter consumido anos de esforço de profissionais e de ter gasto fortunas para preparar mapas coloridos e organizar reuniões para discuti-lo, é que fora de educar, os processos não serviram para nada. Todos e cada um dos exercícios de zoneamento feitos até agora ofereceram resultados transitórios e não ajudaram a evitar a ocupação caótica dos territórios onde foram aplicados. O último episódio aconteceu no estado de Mato Grosso, no Brasil, onde um longo e cuidadoso trabalho de zoneamento concordado foi convertido em uma palhaçada por interesses e ignorância dos legisladores da Assembleia Legislativa que devia aprová-lo. Até agora, o único ordenamento territorial que funcionou mais ou menos é o que resulta do estabelecimento de áreas protegidas, territórios indígenas e de titulação efetiva de propriedades.
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Marc Dourojeanni foi professor e decano da Faculdade Florestal da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru e Diretor Geral Florestal desse país. Atualmente é Presidente da Fundação ProNaturaleza


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