sábado, 5 de março de 2011

VERDADES QUE MUDAM


Setenta e quatro por cento da população da Amazônia brasileira moram em cidades. Este percentual é menor no Peru (54%), mas aumenta em grande velocidade e nos dois países o crescimento da população urbana é muito maior que a rural. Ou seja, são os habitantes urbanos, também na Amazônia, os que mais influenciam e que finalmente tomam as decisões sobre a região, apesar de seu conhecimento da realidade ser parcial e, muitos deles, praticamente nunca terem saído dos limites urbanos. Eles sabem da Amazônia tanto ou menos que os habitantes das capitais, mas o sentido de “estar longe” os faz tender a aceitar como desejável a construção de mais vias de comunicação e a ocupação rápida de todo o espaço e, claro, mudanças no uso da terra da floresta para a agricultura, como nas paisagens de onde são originários. Eles também necessitam de energia e, portanto, favorecem a exploração de petróleo e a construção de grandes usinas hidrelétricas. Mais ainda porque recebem benefícios financeiros (royalties do petróleo, por exemplo) ou empregos privilegiados dessas atividades econômicas.

O aumento da população urbana é, em uma grande parte, fruto da migração local. Agricultores ribeirinhos ou habitantes das florestas, incluindo indígenas, são atraídos para a cidade pelos pressupostos ou reais benefícios que ela oferece, mas sua falta de preparo os leva para os subúrbios miseráveis de cidades como Iquitos e Pucallpa, no Peru, ou de Manaus, Porto Velho e Rio Branco, no Brasil. Neste país, o caso mais extremo é o de Laranjal do Jari. Todas as capitais amazônicas têm extensas faixas de miséria e sofrem de deficiências graves nas condições de saneamento urbano, entre outros serviços.

Em países como Equador, Bolívia e Peru, os novos indígenas estão consideravelmente assimilados à vida das maiorias nacionais. Eles começaram uma luta frequentemente radicalizada por reivindicações que em alguns casos são justas e que em outros casos são absurdas, como quando sendo uma pequena minoria nacional, pretendem impor pontos de vista sobre todos os habitantes de grandes nações. Fazem isso, inclusive, em países como Bolívia e Peru, que têm enormes populações de indígenas andinos que não pensam como eles. Esses indígenas amazônicos modernos, altamente politizados e bem organizados, são uma nova realidade quase insuspeita duas ou três décadas atrás. Além disso, eles possuem legalmente uma enorme fatia da Amazônia, especialmente no Brasil, aonde seus territórios chegam a mais de 100 milhões de hectares, ou seja, 20% do seu território amazônico. Na Colômbia também possuem um percentual considerável da região e no Peru a cada ano acumulam mais terras.

“Todos os países, mas especialmente o Brasil, têm uma densidade de obras públicas, tais como estradas e hidrelétricas, que possibilitam o desenvolvimento visível e que do mesmo jeito estão intimamente ligados à eliminação maciça das florestas para especulações agropecuárias”.
Outra das antigas verdades que perdeu seu peso atualmente é a de uma Amazônia sem infraestrutura. Todos os países, mas especialmente o Brasil, têm uma densidade de obras públicas, tais como estradas e hidrelétricas, que possibilitam o desenvolvimento visível e que do mesmo jeito estão intimamente ligados à eliminação maciça das florestas para especulações agropecuárias. O que existe já é muito, mas o que está previsto para fazer nas próximas duas décadas é enorme em termos de estradas, ferrovias, hidrovias, hidrelétricas, aeroportos e, especialmente, para facilitar a expansão da exploração de petróleo e recursos minerais. A densidade de intervenções infraestruturais previstas no Brasil, Peru e Bolívia fará com que em pouco tempo desapareçam as diferenças com outras regiões desses países. Muitas dessas obras, como é sabido, se justificam somente para satisfazer interesses empresariais (especialmente financeiros e de construção civil) e geopolíticos.

Amazônia florestal? É possível manejar sustentavelmente a floresta natural amazônica?

Cerca de 60 anos atrás, com o apoio do Departamento Florestal da FAO, foram lançados no Brasil e em outros países da região os experimentos de gestão sustentável das florestas naturais. Isso respondia a uma das verdades predominantes sobre a Amazônia baseada na evidência de que estava coberta de florestas exuberantes.

Slogans foram cunhados como "país florestal" e vendida a ideia de que esta foi a maior riqueza da Amazônia, que poderia resultar em uma renda sustentável para todo o sempre. Infelizmente, depois de muitas décadas de pesados investimentos na formação de engenheiros florestais, pesquisas, inventários florestais e planos de gestão que nunca foram aplicados, pode-se argumentar que não há manejo florestal na Amazônia e a riqueza da floresta e sua sustentabilidade não passaram de uma ilusão. Hoje, as florestas que sobraram estão degradadas e muitas ainda são exploradas de uma maneira anárquica e insustentável, não oferecendo benefícios significativos para a economia nacional e muito menos para a sociedade.

O que aconteceu? A resposta é simplesmente que as florestas naturais amazônicos não são tão valiosas em termos madeireiros como parecem e, mais que tudo, os governos jamais conseguiram impor um mínimo de ordem na sua exploração, o que nem sequer foi resolvido com os exercícios de certificação voluntária. A razão é que não é possível realizar gestão florestal, ou seja, um negócio complexo, de longo prazo e que precisa de grandes investimentos, se todos os vizinhos do investidor florestal sério exploram a madeira como e onde eles querem, sem respeitar a lei, e onde não lhe seja oferecida nem sequer a garantia que sua floresta não será invadida pelos agricultores ou madeireiros. Pior ainda quando o governo, em vez de ajudar os investidores sérios, se dedica a torturá-los com a mais dura burocracia, enquanto não vê, não quer ver, a ilegalidade que domina o 95% ou mais da exploração florestal.

Além disso, é necessário reconhecer que realizar gestão florestal de florestas naturais tropicais cumprindo os pré-requisitos, alguns deles extravagantes, exigidos pelos organismos internacionais e copiados pelos serviços florestais nacionais, é tarefa impossível se é pretendido algum lucro. Nem mesmo a Malásia, que por oito décadas foi o exemplo mundial de gestão florestal, conseguiu passar no exame dos filtros conhecidos como “critérios e indicadores de sustentabilidade” que, assim, são outro estímulo da ilegalidade. Prova disso é que os empreendimentos florestais do Brasil, por exemplo, preferem se dedicar ao reflorestamento ou silvicultura, ou seja, trabalhar com espécies madeireiras domesticadas como a madeira de eucalipto ou pinheiro. E nisso já tiveram todo o sucesso que é bem conhecido.

“Florestas tropicais naturais não são um recurso natural renovável. Se elas são exploradas, serão destruídas.”
Personalidades bem conhecidas de uns 30 anos atrás anteciparam esta evolução. Eles foram muito criticados por se atreverem a falar, até mesmo pelo autor deste trabalho, que então, não compartilhava dessa visão. Mas a prova está aí. Florestas tropicais naturais não são um recurso natural renovável. Se elas são exploradas, serão destruídas. Para a gestão sustentável seria necessário, antes, reconstruir os estados dos países tropicais, transformando-os em verdadeiras democracias onde domina a lei e a ordem. Mas tudo indica que quando conseguirmos isso não existirão mais os florestas naturais.

Uma nova geopolítica

Também mudou muita coisa na visão dos que fazem política internacional sobre a Amazônia. Embora ainda continue viva a lenda, porque serve a alguns políticos baratos, de que os EUA ou outras potências querem invadir, anexar ou internacionalizar a Amazônia, já ninguém acredita seriamente que isso seja verdade ou possível. O novo argumento para vender o medo a esse risco se sustenta na importância da Amazônia como reservatório de carbono que poderia agravar o processo das mudanças climáticas. Essa importância é real, mas, por mil e uma razões científicas e econômicas, nenhuma potência nem todas elas juntas precisam internacionalizar a Amazônia para isso. É suficiente, para resolver os problemas, que os países ricos paguem o justo aos seus atuais proprietários. Outro argumento que os políticos gostam de dizer é que os países ricos querem dominar a Amazônia porque “os governos dos países amazônicos demonstram incompetência ou falta de vontade de cuidá-la”. Isso, como sabemos, também é verdade. Mas não justifica gastar a fortuna que custaria a intervenção e sofrer os indescritíveis conflitos que este passo implicaria, quando existem outros ecossistemas como os que estão em mares e oceanos, que têm a mesma função e que devem ser protegidos. Enfim, tudo isso é mera burrice.

Brasil ocupa mais da metade da Amazônia. Isso foi feito pouco a pouco, mas com grandes passos e nem sempre pacificamente. Todos os países amazônicos desenvolveram políticas de ocupação das fronteiras (“fronteiras vivas”) para parar esse avanço. Mas o país que mais desenvolveu esse tipo de estratégia foi o Brasil. O apogeu dessa política foi durante os governos militares que criaram uma rede de caminhos fronteiriços em toda a Amazônia brasileira. Ou seja, logicamente, os países amazônicos nunca duvidaram do papel predominante do Brasil na região. Mas, com prudência influenciada pela falta de recursos os governos dos países andinos, nunca fizeram esforços sérios para se comunicar com o Brasil. Até uma década atrás, o Peru, que é o país com mais território amazônico depois do Brasil, só se comunicava com ele por avião ou com pequenos barcos navegando por dias pelo rio Amazonas. Por isso, apesar de tudo, o Brasil não exercia um papel importante na Amazônia de seus vizinhos.

“Brasil estuda, financia, constrói, opera e “compra” tudo ou quase tudo o que precisa do Peru, deixando para ele o pagamento de uma dívida que se agiganta e um passivo ambiental que rapidamente será imensurável.”
Na última década tudo mudou. Não tanto porque Brasil modificou seu comportamento, mas porque mudou sua tática graças a vários fatores, entre os que destacam: o bom momento econômico e suas necessidades rapidamente crescentes de energia para apoiar seu desenvolvimento e, esse propósito foi ajudado pela chegada ao poder de governos muito propensos ao desenvolvimento aparente e pouco cuidadoso com o patrimônio nacional, especialmente no Peru.

Os presidentes peruanos Fujimori e, especialmente, Toledo e García abriram incondicionalmente as portas para o expansionismo econômico brasileiro que atualmente executa na Amazônia peruana seu próprio plano de desenvolvimento, atendendo suas próprias necessidades de mercado, de insumos para mineração e demanda de energia. Brasil estuda, financia, constrói, opera e “compra” tudo ou quase tudo o que precisa do Peru, deixando para ele o pagamento de uma dívida que se agiganta e um passivo ambiental que rapidamente será imensurável. Este comportamento também é aplicado pelo Brasil na sua própria e vasta Amazônia, e também nos outros países amazônicos, tanto nos andinos como nos dos nordeste sul-americano. Em todos esses países, as infraestruturas e a exploração de recursos naturais servem, cada dia mais, para atender às demandas do Brasil e aumentar as ganâncias de suas empresas e, cada dia menos, para ajudá-los a prosperar de forma sustentável. Já acabou o tempo em que era verdade que a Amazônia era explorada predominantemente para servir a outras nações desenvolvidas de outras latitudes geográficas.

Uma região que não contribui com o produto interno bruto?

Exceto durante a triste época da exploração da borracha, a Amazônia foi sempre considerada como uma região que contribuía de forma marginal com o PIB dos países. Isso foi especialmente sentido nos países andino-amazônicos e justificou em parte o desprezo nacional por essa região remota e “inútil”. Essa situação mudou quando as reservas conhecidas de petróleo começaram a ser exploradas nas décadas de 1970 e 1980, mas, especialmente, quando o preço internacional do petróleo e novas descobertas permitiram expandir a exploração a níveis não imagináveis antes da década de 1990. Hoje petróleo e gás, mineração formal, sem contar atividades ilegais como as ligadas ao tráfico de drogas e a exploração mineral informal que não são contabilizadas, estão aportando mais e de modo considerável à economia dos países. No Brasil, além da mineração em grande escala, a contribuição para a economia vem da expansão agropecuária baseada na pecuária extensiva e agricultura bem intensiva, atividades que ocupam já uma grande parte da Amazônia neste país, especialmente em Mato Grosso e Pará. A exploração da energia hidrelétrica e de petróleo na Amazônia brasileira está contribuindo cada vez mais com seu PIB.

Um dos problemas permanentes na estimativa da contribuição para o PIB da Amazônia gira em torno dos critérios que usados para definir essa região, especialmente nos países andinos. Na verdade, se em vez de defini-la usando critérios políticos ou, apenas pela existência de florestas, fosse usado o critério de bacia, a Amazônia seria provavelmente a região que mais aporta à economia nacional. Assim, no caso do Peru, por exemplo, a maioria das grandes minas e das usinas hidrelétricas estão localizadas nesta bacia, que contaminam. Mas seus aportes para a economia são contabilizados nos departamentos (estados peruanos) ou diretamente em Lima, devido aos critérios que dissimulam sua origem.

Conclusão

O tempo implica transformações que nunca param. Mas algumas regiões mudam mais rapidamente que outras. Não existe nos países que possuem partes da Amazônia nenhuma outra região que haja sofrido mudanças tão rápidas e radicais como nesta. É por essa velocidade de mudanças que ainda existe tanta confusão num grande público, e lamentavelmente, também entre os tomadores de decisões sobre o que ela é realmente, atualmente e sobre o que se pode prever.

O autor deste artigo admite que suas percepções sejam discutíveis e, obviamente, reconhece que os entendidos em assuntos amazônicos já sabem de todo o dito e muito mais. Esta matéria não foi escrita para eles. Foi escrita pensando nas maiorias cujos votos determinam o futuro de seus países. Seu objetivo pretensioso é ajudar que os próximos governantes pensem mais antes de tomar decisões que construirão o futuro da Amazônia

Nenhum comentário:

Postar um comentário